MANIFESTO POR VIDAS DESPATOLOGIZADAS
DIREITO ÀS DIFERENÇAS, COMBATE ÀS DESIGUALDADES.
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No campo dos enfrentamentos que estamos vivendo hoje, no contexto das polÃticas públicas que precarizam nossas vidas, precisamos conversar sobre um tema fundamental para toda a sociedade e, em especial, para profissionais da saúde, educação e assistência social: a importância do direito à diferença e, consequentemente, do respeito a este direito. O nosso e o de todos.Â
Diferenças, singularidades não devem ser compreendidas a partir de rótulos ou preconceitos, da busca de defeitos, o que falta ou excede, na certeza de que haveria um problema, uma anormalidade a ser revelada. Diferenças são expressões da singularidade do sujeito, de sua vida. Necessário destacar que diferenças não são o mesmo que desigualdades; ambas são histórica, polÃtica e socialmente construÃdas, porém as desigualdades resultam da produção polÃtica de sistemas de hierarquização de diferenças e devem ser enfrentadas.Â
A partir dessa concepção, precisamos cuidar de nossos discursos, de nossa praxis. A leitura das diferenças em uma chave de compreensão marcada por palavras como transtornos, distúrbios e, até mesmo, dificuldades, traz, em suas raÃzes estigmatização, patologização, medicalização e mesmo, judicialização. Os processos de patologização e medicalização da vida deslocam problemas coletivos, decorrentes dos modos históricos de organização polÃtica, social, econômica da sociedade, problemas inerentes a estar vivo na contemporaneidade, para a esfera do individual, do inato. O que é coletivamente determinado é transformado em individual, o que é socialmente construÃdo é reapresentado como se fora biológico. Escamoteiam-se assim, as instâncias de poder que geram e mantêm tais problemas, o sujeito é capturado nessa teia e passa a introjetar a concepção de si como anormal, doente, transtornado. E porque esses processos estão intrincados no tecido social e estamos todas e todos imersos nesse tecido, torna-se fundamental discutir, conscientizar e sensibilizar a sociedade, afetando cada vez mais pessoas, para que formas de identificação e de enfrentamento sejam construÃdas e utilizadas. Hoje, processos de patologização ainda são hegemônicos e se infiltram nos modos de viver da maioria das pessoas, inclusive de profissionais que, em tese, pela formação e campo de atuação, deveriam estar empenhados na produção de outras formas de compreender e acolher as diferenças. Isto coloca responsabilidades a todos os conselhos de classe e entidades afins, na tarefa de construir estratégias que abranjam todos os profissionais da saúde, educação e assistência social.Â
Também não esqueçamos que naturalização implica despolitização, e por consequência, desconsideração de direitos, uma conquista da humanidade, pela qual milhões morreram e continuam morrendo. O que queremos destacar é que os processos de patologização acontecem na articulação da naturalização da vida com a desconstrução de direitos e a negação do sujeito datado e situado, como bem disse Paulo Freire. Desprovido de sua condição de sujeito, o indivÃduo é reduzido a corpo objetificado, pela negação da historicidade que o constitui.Â
É fundamental reiterar que, mesmo quando há uma condição de doença ou de sofrimento, com diagnóstico produzido a partir de princÃpios éticos e teórico-práticos fundamentados, o sujeito é sempre mais que sua condição E a atuação profissional nessas situações está compromissada com a leitura dos contextos de produção de cuidado e ampliação de vida.
A escola, a famÃlia, os espaços de recreação, de trabalho e convivência são campos para o diálogo, brechas para entrarmos na reflexão sobre como exercer plenamente esse direito a diferir (todos somos singulares!), e o direito a não ser diminuÃdo. Valorizar e respeitar diferenças, não naturalizar desigualdades. Não é natural não ter comida na mesa todos os dias; não é natural estudar numa escola caindo aos pedaços; não é natural não ter água potável encanada; não é natural não ser respeitado em sua própria orientação sexual ou expressão de gênero; não é natural ter acesso negado pelo pertencimento étnico ou pela condição de deficiência; não é natural ser violentado; não é natural…
Negar o direito à diferença e naturalizar a desigualdade são substrato para concepções de saúde mental - melhor dizendo, concepções de doença mental - que transformam processos decorrentes do viver um determinado espaço-tempo em doença, em distúrbio, em transtorno, com a criação e lançamento de novas categorias nosológicas nem sempre cientificamente embasadas; eis um bom indicador de como essa descontextualização da vida vem avançando muito rapidamente. O aumento de diagnósticos de transtornos mentais em plena pandemia é uma das maiores evidências dessa concepção que descontextualiza o sofrimento psÃquico, ao negar que este sofrimento, que atinge a todas e todos que têm consciência do estado de desamparo e desesperança que vivemos, que nos assola, tem determinantes sociais conhecidas, não podendo ser distorcido e apresentado como doença de cada um de nós. Ressaltamos que isto não significa negar que muitas pessoas precisam de acesso a cuidados especializados; atender, acolher, cuidar de quem necessita é intrÃnseco à atuação de profissionais da saúde. Entretanto, exige respeitar, entender e agir sobre os motivos pelos quais se sofre, o que é diferente de atribuir o sofrimento a um transtorno intrÃnseco à própria pessoa.Â
Nas construções de diferenças e desigualdades, todos somos partÃcipes. Aprendemos, desde cedo, que existiria um ser humano modelo, uma referência ideal a ser atingida e padrão para comparações: homem adulto, branco, cishetero, católico, casado e empregado. Crianças são percebidas em referência a esse modelo; idem adolescentes; mulheres adultas, velhos e velhas, negras, negros e indÃgenas, homossexuais e transexuais, todas e todos são sempre lidos a partir de um padrão que lhes é estranho, violento. Ou seja, são sempre avaliados a partir de uma inadequação, desconformidade, desigualdade prévias. Não diferem apenas, são desiguais, pois hierarquicamente inferiores. Esta concepção social e politicamente construÃda alicerça os processos de medicalização e patologização da vida. Â
Se queremos que crianças e adolescentes aprendam, devemos considerar seus tempos, seus valores, seus interesses, suas formas de estar no mundo; se queremos que professoras e professores sejam valorizados, devemos reconhecer a relevância de suas lutas por melhores condições e relações de trabalho e salário, valorizando a escola como espaço de produção e apropriação do patrimônio humano; se queremos que as famÃlias sejam acolhidas, devemos aprender a reconhecer suas demandas e necessidades e suas múltiplas formas de se constituir e produzir cuidado; se não queremos ser julgados por racistas, machistas, misóginos, cisheterossexistas, classistas, capacitistas, precisamos ofertar condições para que as tantas formas de se constituir humano encontrem acolhida respeitosa em nossas práticas profissionais, em nossos serviços e polÃticas sociais.  Â
Enfim, se queremos participar da construção de outros futuros, precisamos nos implicar com a necessidade de mudanças, começando por respeitar e valorizar as diferenças em todas as esferas da vida e combater as desigualdades.  Se outro futuro é necessário, outra Saúde também o é. Â
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ABRAPEE - Associação Brasileira de Psicologia Escolar e Educacional
ABRASME - Associação Brasileira de Saúde Mental
CRP SP – Conselho Regional de Psicologia de São Paulo
CREFONO 2 - Conselho Regional de Fonoaudiologia do Estado de São Paulo
Despatologiza - Movimento pela Despatologização da Vida
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