A Associação Brasileira de Saúde Mental (ABRASME), que reúne profissionais, trabalhadores e ativistas em favor da reforma psiquiátrica e da luta antimanicomial de todo o país, recebeu um pedido de apoio por parte de pessoas participantes do Movimento Ouvidores de Vozes. Frente a solicitação e estando ciente do ocorrido, apoiamos e tornamos pública a Nota de Esclarecimento sobre o Movimento de Ouvidores de Vozes.
Nota de esclarecimento sobre o Movimento de Ouvidores de Vozes
O Movimento de Ouvidores de Vozes, vem a público declarar sua indignação e trazer esclarecimentos acerca do movimento diante de manifestações de um(a) profissional de psicologia que utilizou das redes sociais para questionar a prática do Movimento de Ouvidores de Vozes fazendo uso de termos claramente psicopatológicos e alarmantes, como se o movimento quisesse naturalizar e desconhecer a necessidade de cuidado e de acolhimento a essas pessoas. As manifestações desse(a) profissional demonstra uma visão reducionista, distorcida e bastante conservadora sobre o fenômeno de ouvir vozes, que geraram muito mal-estar nos integrantes do Movimento de Ouvidores de Vozes do país, pois:
a) repete automaticamente uma concepção da psiquiatria convencional que o vê exclusivamente como um sintoma de um quadro psicopatológico, associado à psicose, que exige necessariamente uma intervenção (sem indicar que tipo, mas pelo tom, parece ser do tipo como a psiquiatria clássica faz, utilizando medicação maciça e internações em hospitais especializados);
b) um total desconhecimento do movimento dos Ouvidores de Vozes, que hoje constitui um movimento mundial, presente em mais de 30 países, inclusive em várias cidades do Brasil;
c) um completo desconhecimento das estratégias de lidar do movimento, que reconhece a necessidade sim de acolhimento e de estratégias cuidadosas de lidar, e que também não nega o suporte de profissionais de saúde mental de vários tipos.
Assim, o Movimento de Ouvidores de Vozes se sentiu obrigado a se manifestar e prestar esclarecimentos mais gerais sobre o tema.
O movimento dos Ouvidores de Vozes nasceu em meados da década de 1980, na Holanda, um país que desde a década de 1970 tem um forte protagonismo de pessoas usuárias de serviços de saúde mental, com numerosos grupos de ajuda e suporte mútuos. Um psiquiatra e professor de psiquiatria, Marius Romme, tinha esgotado todos os recursos convencionais da profissão no atendimento de uma pessoa que ouvia vozes. Resolveu então publicar na imprensa um pedido de depoimentos de pessoas com experiências similares, e recebeu mais de 700 deles. Nesse trabalho de troca de experiências, nas pesquisas que se seguiram e em sua prática clínica e particularmente com os grupos de troca de experiências, foi percebendo então outras dimensões do fenômeno:
a) Não se trata apenas de algo socialmente estigmatizante e perturbador, pois há muitas pessoas que lidam bem com suas vozes, e que até mesmo as consideram positivas, inspiradoras e reconfortantes. Um exemplo foi do escritor Charles Dickens, que ouvia vozes e estas indicavam novos personagens e ações interessantes para seus romances. Outras pessoas as consideram como algo associado a fenômenos espirituais que fazem parte integral da experiência religiosa.
b) Para as muitas pessoas que têm vozes perturbadoras, tanto para si como para seus familiares e amigos, a abordagem psiquiátrica convencional ou da psicologia comportamental as vê como vítimas passivas da experiência, e a medicação e a modelagem do comportamento visa a diminuição ou mesmo a extinção do fenômeno, ignorando o significado das vozes. O movimento não nega o suporte secundário de medicamentos, mas rejeita a estratégia de impedir o reconhecimento de sua importância e o processamento emocional delas.
c) As pesquisas do Dr. Romme, dos demais pesquisadores e do movimento demonstraram que apenas 16% das pessoas que ouvem vozes as têm em associação com o diagnóstico de esquizofrenia, e que a maioria absoluta das vozes indesejáveis têm origem em experiências traumáticas passadas, tais como abuso sexual e físico, negligência emocional, altos níveis de estresse, bullying, etc, que não puderam ser elaboradas pelas pessoas que as tiveram. O movimento então estimula seus participantes a terem uma abordagem ativa no trato com as vozes, a conhecerem a si mesmos, suas emoções, a personalidade de cada uma das vozes, e suas relações com os problemas e emoções que viveram no passado. Em outras palavras, o movimento, as narrativas pessoais de vida com as vozes e a troca de experiências entre os participantes de grupos estimulam práticas ativas e estratégias inovadoras para se ouvir e conversar com as vozes e descobrir seus significados na vida de cada pessoa, com níveis muito elevados de recuperação e melhora na qualidade de vida de seus participantes.
Do exposto, convidamos os profissionais, trabalhadores e pessoas interessadas no tema para que conheçam mais o Movimento de Ouvidores de Vozes, e que cessem imediatamente essas manifestações na Internet baseadas apenas em opiniões imediatistas, que tendem a reproduzir acriticamente as visões dominantes da psiquiatria manicomial e que ignoram a ampla literatura acadêmica sobre o tema e do próprio movimento, em seus vários livros, artigos e sites na internet.
E finalmente, é importante lembrar que manifestações como essas estimulam a discriminação e geram muito mal-estar entre as pessoas que ouvem vozes e entre as que participam do movimento, e tendem a colocar em dúvida e invalidar estratégias de lidar que têm mostrado, segundo a literatura acadêmica, alta efetividade no processo de recuperação dessas pessoas.
Para avançar o conhecimento sobre o movimento dos Ouvidores de Vozes, sugerimos acessar algumas das principais referências disponíveis, listadas a seguir.
Brasil, 16 de maio de 2023.
Movimento de Ouvidores de Vozes Brasil
Referências bibliográficas
ROMME, MARIUS E ESCHER, SANDRA. Na companhia das vozes: para uma análise da experiência de ouvir vozes. Lisboa, Editorial Estampa, 1997.
ROMME, MARIUS E ESCHER, SANDRA ET AL. Living with voices: 50 stories of recovery. England, Ross-onWye, 2011
BAKER, PAUL. The voice inside: a practical guide for and about people who hear voices. England, Isle of Lewis, 2009. Uma tradução para o português desta obra na forma de ebook está disponível no site:
https://materiais.cenatcursos.com.br/livro-paul-baker
VALENTE, PABLO. A história do movimento internacional dos Ouvidores de Vozes. Disponível em:
https://blog.cenatcursos.com.br/o-movimento-internacional-dos-ouvidores-de-vozes/
CORRADI-WEBSTER, C. M.; RUFATO, L. S.; LEÃO, E. A.; REIS, G. C.; BIEN, C. Grupos de Ouvidores de Vozes: Experiências de um grupo de suporte de pares em contexto brasileiro. Revista Iberoamericana de Psicologia, v. 14, p. 83-90, 2021.
RUFATO, L. S.; CORRADI-WEBSTER, C. M. ; SADE, R. M. S. ; REIS, G. C. ; BIEN, C. ; COSTA, M. N. . Suporte de pares em Saúde Mental: Grupo de Ouvidores de Vozes. Cadernos Brasileiros de Saúde Mental, v. 13, p. 156-174, 2021.
CORRADI-WEBSTER, C.M.; SANTOS, M. V. ; LEÃO, E. A. Construindo novos sentidos e posicionamentos em saúde mental: Grupo de Ouvidores de Vozes. In: Emerson F. Rasera, Karin Taverniers y Oriana Vilches-Álvarez. (Org.). Construccionismo Social en acción: Prácticas inspiradoras en diferentes contextos. Chagrin Falls: Taos Institute Publications, 2017, v. 1, p. 167-193.
CORRADI-WEBSTER, C. M.; LEÃO, E. A.; RUFATO, L. S. Colaborando na trajetória de superação em saúde mental: Grupo de Ouvidores de Vozes. Nova Perspectiva Sistêmica, v. 27, p. 22-34, 2018.
KANTORSKI, L.; et al. Grupos de ouvidores de vozes: estratégias e enfrentamentos. Saúde em Debate, v. 41, p. 1143-1155, 2017.
Sites na Internet do movimento internacional de Ouvidores de Vozes:
https://www.hearing-voices.org/
https://www.intervoiceonline.org/#content
https://sites.usp.br/ouvidoresdevozes/quemsomos/